Memórias de um Igarapé¹
Prof. José Maria Leite Botelho
Não me recordo muito bem o dia em que nasci. Só sei que já faz muito tempo. Naquele dia, eu já havia saturado o lençol freático do qual nasci. Comecei a escorregar lisinho, bem de mansinho, escorreguei, deslizei cada vez mais forte. Vieram as chuvas torrenciais e ajudaram-me a escavar o meu leito, serpenteando por entre a floresta. É bem verdade que aproveitei o vale já existente. Mas o trabalho árduo fez com que pudesse derramar minhas águas dentro de um grande rio, o Rio Madeira. Rio enorme, caudaloso, que vem lá dos Andes. Os Andes são aquelas montanhas de até sete mil metros de altitude e que ficam na parte oeste da América do Sul. Bem, quando caí dentro do rio senti calafrios, pois minhas águas eram tão pequenas e límpidas, misturadas às águas barrentas, de cor amarelada daquele tão importante rio. Na caminhada até o rio, deslizei por entre árvores das mais variadas espécies: seringueiras, piranheiras, faveiras, capitari, sipiá, mari-mari e tantas outras. Permaneci escondido entre a floresta, nem sei por quanto tempo. Mas, apesar de escondido, eu era feliz ali, a deslizar nos troncos das árvores.
Foto: Igarapé de Calama época da cheia. Local: Porto da Pensão - 2011
Fonte: José Maria Leite Botelho – 2011
Passaram-se muito tempo e começaram a aparecer umas pessoas meio esquisitas. Esquisitas nem sei por que, pois eu não conhecia até então, ninguém daquele tipo, usavam arcos e flechas, andavam nuas, bem eu só soube que andavam nus, tempos depois. Só sei que aquelas pessoas gostaram muito das minhas águas. Isso eu deduzi pelo jeito com que eles se banhavam em meu leito, a deslizar em minha fria e cristalina água. Modéstia à parte, minhas águas são de fazer inveja. Os novos conhecidos tornaram-se meus amigos, mesmo porque o meu nascimento encurtou-lhes o caminho para o Rio Madeira. Depois de muito tempo vieram outras pessoas. Essas não andavam nuas e nem usavam arcos e flechas. Usavam armas que faziam barulho quando eram disparadas. Parece que o encontro entre os meus visitantes não foi muito amistoso. Foi uma verdadeira guerra de arcos e flechas contra as armas barulhentas. Os que andavam nus queriam “por direito” se apossar de mim, enquanto que os que andavam vestidos queriam a minha posse pelos mesmos motivos. Depois de décadas de luta os primitivos visitantes foram vencidos. Pobre de mim, os vencedores puseram-se a abrir feridas em minhas margens, ora cortando as matas, ora escavando o meu leito. A princípio, o calorzinho do sol era gostoso, mas depois o calor foi aumentando, mas não chegava a preocupar. Passaram-se algum tempo, anos, muitos anos, cinqüenta, setenta, cem anos, sei lá quantos! Só sei que nos últimos dez anos, estou bastante preocupado com o meu destino. As matas de minhas margens foram sendo devoradas pelas pessoas de armas barulhentas e agora quando chove, tomo um banho de águas sujas, em algumas partes estou quase desaparecendo.
Fonte: José Maria Leite Botelho – 1990
Antigo porto da “Pensão” – na época de estiagem. O porto da “Pensão” era assim chamado por ser o local de banho dos hóspedes da antiga pensão (hotel) denominado de “enforcado.”
Apesar de ser um pequeno igarapé, de mais ou menos uns dois quilômetros de extensão, tenho grande serventia para a população que se banha e utiliza minhas águas cristalinas. Mas como estava contando ainda a pouco, estou preocupadíssimo não só com o meu destino. Estou preocupado também com as pessoas. Elas não percebem que estão destruindo minha beleza e minha serventia. Vocês já pensaram o que fizeram às árvores que me emprestavam a sombra e serviam de pousada aos pássaros que gorjeavam para eu ouvir? Cortaram-nas todas. E deixaram-me exposto aos raios solares. As águas pluviais arrastam-se para dentro do meu leito e com elas, uma grande quantidade de terra. É como se a terra arrastada quisesse tapar-me as veias, estreitando-me a passagem.
Infelizmente, as pessoas estão provocando uma disputa pelo espaço entre minhas águas e a terra arrastada pelas chuvas. Talvez não haja vencedor; ao contrário, o próprio homem transformar-se-á em perdedor. É uma pena!
Agora, há pouco tempo, tenho presenciado animais esquisitos rondando minhas cabeceiras. Os humanos dizem que aqueles animais são muito importantes. Só não percebem, ou se esquecem que os animais estão jogando todos os dias os restos não aproveitáveis pelo seu organismo, perto de minhas margens. Pobre de mim, quando vierem as chuvas torrenciais, pois vou ter que receber toda aquela sujeira. Minhas cristalinas águas continuarão assim, limpinhas? De onde as pessoas irão buscar água para beber? Beberão água poluída? Ou irão abastecer-se das águas contaminadas do Madeira? Coitado do rio Madeira! Está cheio de mercúrio, aquele mineral usado na queima para separar o ouro, coitado! O Rio Madeira está alarmado e grita por socorro.
Mas ainda há tempo para consertar o erro, tempo para amenizar todo o desgosto causado à mãe natureza e pelo qual tenho passado. Eu continuo a perdoar. E sabem de que maneira? Jorrando minha água pura e cristalina das entranhas da Terra, lá daquele lençol freático que eu mesmo saturei, rompi. Lembra?
Pois bem, vocês que se banharam e se deleitaram em minhas frias e cristalinas águas; vocês que tiveram o prazer de banhar vossos amados filhos em meu precioso líquido, não me deixem desaparecer. Permitam que a vegetação cresça novamente em minhas margens, um pouquinho só. Uns cinqüenta metros de cada lado. Bem que poderia ser cem metros. Mas, cinqüenta metros, já servem. Dessa forma, não morrerei vitimado pelo assoreamento. O que é assoreamento? Assoreamento é a ação causada pelos sedimentos sobre um leito de qualquer rio, igarapé, lago, isto é, assoreamento é a morte de um manancial pelo aterramento. Deixe crescer, a floresta, o mato ao meu redor, a mata ciliar, como andam chamado, por aí. Elas (as matas) reterão as impurezas derramadas à minha montante e me protegerão. Em troca, darei a todos, sombra e água fresca, bem fresquinha e cristalina.
¹Texto escrito em 1995.